O desmantelamento do Estado brasileiro

Em Atalaia do Norte, onde Bruno Pereira e Dom Philipps foram assassinados, clima entre indígenas e funcionários da Funai é de medo e abandono. Região foi praticamente entregue às máfias ambientais pelo governo Bolsonaro.

Philipp Lichterbeck, Deutsche Welle

Escrevo esta coluna em Atalaia do Norte, na Amazônia. Este é o local até onde Bruno Pereira e Dom Philips jamais conseguiram chegar. No caminho até aqui, o indigenista brasileiro e o jornalista britânico foram assassinados no rio Itaquaí. Seus corpos foram queimados, esquartejados e enterrados na floresta.

Desde então, a polícia prendeu vários suspeitos. Mas os indígenas que vivem em Atalaia do Norte e estão engajados na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) ainda vivem com medo. Quando nos encontramos, eles pediram que não tirássemos fotos e não citássemos os nomes deles. Eles não acreditam que o Estado seja capaz ou tenha a intenção de protegê-los.

Mesmo que os assassinos possam estar presos em Manaus, os indígenas sabem que a Terra Indígena do Vale do Javari continua sendo alvo de uma máfia de pescadores, caçadores e madeireiros ilegais. Garimpeiros também invadem o território.

Fomos alertados a ter muito cuidado navegando pela rota que Dom e Bruno percorreram em sua última viagem. Ela começa na base da Funai em Ituí-Itaquí, na entrada do Vale do Javari, a reserva com o maior número de povos indígenas isolados em todo o mundo. Depois de a base ter sido alvo de diversos ataques armados em 2019, quatro soldados da Força Nacional foram posicionados ali para proteger os funcionários da Funai, que não andam armados.

Escassez de recursos

Ao chegarmos à base da Funai, notamos dois barcos em um hangar. Eles tinham motores de 40 e 15 hp, e nos perguntamos como a Funai pretende fazer o monitoramento e fiscalização efetiva da Terra Indígena com essas embarcações.

O barco dos assassinos de Dom e Bruno tinha um motor de 60 hp. Eles costumavam entrar no vale através de rotas secretas para pescar ilegalmente. O Estado brasileiro está, portanto, em desvantagem em relação aos criminosos já no que diz respeito a equipamentos.

Soubemos que também há uma escassez crônica de combustível na base. Pediram que levássemos um antropólogo da Funai, que trabalha com povos isolados e acabara de passar 60 dias na selva, de volta para Atalaia em nosso barco, numa viagem de duas horas e meia. Quando passamos pelos povoados onde moravam os assassinos de Dom e Bruno, o funcionário confessou que está com muito medo.

Ele também disse que dependia dessa carona – o que nos levou a pensar no que acontece com o Estado brasileiro, que subfinancia suas agências e abandona seus funcionários. Há, no entanto, algumas exceções: sob Bolsonaro, as Forças Armadas receberam Viagra e leite condensado.

Quatro anos de desmonte

Mas, por que estou contando tudo isso? Porque um dos resultados de quatro anos de Bolsonaro é a destruição de parte do Estado brasileiro. O presidente não somente reduziu os recursos financeiros, mas também o número de funcionários e as competências das autoridades federais, construídas durante anos de trabalho.

Cargos de gerenciamento foram ocupados por militares e bolsonaristas que, com frequência, possuem pouca competência, mas muito radicalismo. Muitas vezes, o que se viu foi uma deturpação da função dos respectivos órgãos, como foi o caso no Ibama, ICMbio e na Funai. Assim, em vez de proteger o meio ambiente, passaram a proteger os destruidores do meio ambiente, como fazia o ex-ministro Ricardo Salles.

Resultado: os criminosos foram encorajados, e as máfias, fortalecidas, enquanto o funcionalismo do governo foi enfraquecido. Não é coincidência que o funcionário da Funai Maxciel Pereira tenha sido morto a tiros em plena rua em Tabatinga, durante o governo Bolsonaro.

Quando Bruno Pereira foi assassinado, o azar dos assassinos foi que Dom Philips, um correspondente internacional, estava com ele. Se não estivesse, o crime contra Bruno teria, provavelmente, ficado sem solução, assim como o de Maxciel. Essa é a opinião unânime de todos com quem conversamos na região de Atalaia do Norte.

Governo aliado de criminosos

É notável como um presidente que se coloca como dedicado à lei e a ordem se tornou um aliado de criminosos: grileiros, incendiários, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais.

Isso pode até ser menos perceptível no resto do Brasil, mas é um desdobramento claro na Amazônia. O governo Bolsonaro, que sempre ressalta que “a Amazônia é nossa”, entregou a floresta à máfia ambiental, enfraquecendo deliberadamente o Estado.

*Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012.

Imagem: Ações de madeireiros ilegais e outros grupos criminosos aumentaram na Amazônia sob Bolsonaro – Foto: Tarso Sarraf/AFP/Getty Images

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

nove + onze =